I. INTRODUÇÃO GERAL
O relato da paixão e morte de Jesus é um dos mais antigos escritos do Segundo
Testamento. Corresponde ao núcleo central do querigma cristão. Jesus é Messias,
anunciado nas Sagradas Escrituras, Filho de Deus que se fez carne, realizou
sinais e prodígios, foi condenado e morto. Sua missão consistiu em realizar a
vontade de Deus, amando a humanidade até o extremo. Seus posicionamentos não agradaram
às instituições de poder. Foi perseguido, preso, julgado e condenado à morte.
Injustamente, mataram o Justo (evangelho). Jesus é a figura do Servo sofredor,
conforme descreve o Segundo Isaías. Um inocente sofre a paixão, carregando
sobre si as nossas dores e nossos crimes. É desprezado por todos. Nele não há
formosura e sinal nenhum de poder. Seu corpo foi sepultado entre os ímpios. O
Servo amado de Deus, pelo caminho do sofrimento e da morte injustamente
infligidos, resgatou a verdadeira justiça. A entrega de sua vida foi em
reparação pelos pecados da humanidade (I leitura). As primeiras comunidades
cristãs confessam que Jesus é o único e eterno sacerdote. Porque foi provado no
sofrimento, é capaz de compadecer-se de nossas fraquezas e nos alcançar a
misericórdia de que necessitamos (II leitura). Celebrar a paixão e a morte de
Jesus é reconhecer e acolher o amor sem limites de Deus. Em atitude de gratidão
e de arrependimento, deixamo-nos invadir pela sua graça, que nos transforma.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. Evangelho (Jo
18,1-19,42): A paixão e a morte de Jesus
Após a oração sacerdotal de Jesus (Jo 17),
o Evangelho de João faz a narrativa da sua paixão e morte. A oração consiste
num insistente pedido ao Pai para que os discípulos sejam guardados de todo mal
e o amor de Deus permaneça com eles. Jesus tem consciência de sua partida. A
morte é consequência de sua fidelidade ao projeto de amor do Pai. Por essa
fidelidade, Jesus entrega sua vida de forma consciente: “Ninguém tira a minha
vida. Eu a dou livremente” (10,18).
Em um jardim se desencadeia o processo da paixão de Jesus.
Também num jardim ele será crucificado e sepultado. O jardim é lugar simbólico.
Lembra o paraíso terrestre. Lugar de beleza e fecundidade. O jardim do Gênesis
foi profanado pelo orgulho humano: tornou-se espaço de divisão e morte. O
jardim da morte de Jesus, porém, é o espaço do resgate definitivo da vida.
Jesus costumava reunir-se com seus discípulos no jardim, fora do
lugar social das instituições de poder, com as quais, gradativamente, ele vai
rompendo. Os discípulos demonstram dificuldade de entender a postura de Jesus.
Judas, por exemplo, não consegue desvencilhar-se da ideologia dominante. Faz um
acordo com os líderes religiosos de Jerusalém e entrega Jesus. Um batalhão de
guardas armados é mobilizado para prendê-lo, sinal de que era realmente
considerado um indivíduo perigoso para o sistema oficial de poder.
Procuram Jesus à noite. As trevas, no Evangelho de João, têm um
significado especial: em oposição à luz, simbolizam o mal. A ação que está
sendo executada é sinal da maldade do “mundo” (instituições que excluem e
matam). Jesus, “consciente de tudo o que lhe acontecia”, apresenta-se com o
título divino “Eu sou”, identificando-se com o Deus do Êxodo (Ex 3,14). Esse
título, paradoxalmente, está ligado com a origem humilde de Jesus: Nazaré da
Galileia. O nazareno é Deus. Não é por nada que os guardas caem por terra.
Também Pedro revela
muita dificuldade de entender a proposta de Jesus. Sua mentalidade ainda se
baseia na ideologia triunfalista. Jesus, porém, vai por outro caminho: a
vitória da vida não se dá pelo confronto e pela violência, mas pela obediência
ao amor a Deus e ao próximo, também aos inimigos. Foi realmente difícil para
Pedro. Decepciona-se com Jesus e vai negá-lo. Mas não deixará de reconhecer
profundamente sua falta e tornar-se um discípulo exemplar.
Tanto a instância
religiosa, representada por Anás e Caifás, como a instância política do império
romano, representada por Pilatos, não encontram motivos para a condenação de
Jesus. Esta será efetivada por interesse e conveniência dos chefes. Não foi
Deus que quis a morte de seu Filho. Ela foi consequência da opção de Jesus pela
verdade e pela justiça, conforme se constata no seu testemunho diante de
Pilatos.
O caminho da “via sacra”
até a morte de cruz é a síntese de todo o sofrimento humano assumido por Jesus
como gesto de extrema solidariedade. Ele se fez maldito (quem morre suspenso no
madeiro é maldito de Deus: Dt 21,23) e foi crucificado entre dois malditos.
Todos os crucificados e malditos deste mundo estão contemplados na morte de
Jesus. Todos são redimidos no seu amor.
A cruz, para os
cristãos, torna-se o caminho de seguimento de Jesus. Significa empenhar-se por
um mundo de paz e justiça; renunciar ao poder em todas as suas dimensões;
denunciar situações que geram exclusão e morte; assumir a causa dos pequeninos;
doar-se cotidianamente pela causa da vida em plenitude, sem exclusão.
2. I leitura (Is 52,13-53,12): A missão do Servo sofredor
Vários textos do Segundo Testamento interpretam a paixão e a
morte de Jesus à luz da profecia do Segundo Isaías. Especialmente com base nos
quatro cânticos do Servo sofredor, percebe-se íntima ligação com o sofrimento
de Jesus. Supõe-se até que Jesus tenha alicerçado sua missão sobre a teologia
do Servo sofredor.
O texto para a meditação
desta sexta-feira santa refere-se ao quarto cântico. O Segundo Isaías (caps.
40-55) é um movimento profético atuante no meio dos exilados na Babilônia em
meados do século VI a.C. Busca incutir ânimo e esperança ao povo que está longe
de sua terra, em situação de dor e desolação. É esse povo o “Servo sofredor”:
desprezado, aviltado em sua dignidade humana, maltratado, sem beleza e sem
importância; condenado injustamente como malfeitor e totalmente desprotegido,
sem condições de defesa.
No entanto, esse povo
desprezível e maltratado descobre-se como eleito por Deus para uma missão de
solidariedade e expiação. Sobre si carrega as dores e enfermidades do mundo, os
crimes e iniquidades da humanidade. Esse “Servo sofredor”, visto como um
humilhado e castigado por Deus, pelo seu aniquilamento, proporcionou a cura de
todos. Deus fez cair sobre seu Servo amado todas as faltas da humanidade. Por
ele, os povos recebem o perdão e a paz.
É fácil perceber por que
as comunidades cristãs primitivas aplicaram a Jesus a descrição do “Servo
sofredor” do Segundo Isaías. Ele se fez Servo de todos e ofereceu sua vida em
sacrifício expiatório. Pela sua morte, resgatou a vida de toda a humanidade. O
justo condenado injustamente garantiu a nossa justificação.
3. II leitura (Hb 4,14-16; 5,7-9): Jesus é o único mediador
entre a humanidade e Deus
Um dos objetivos da
carta aos Hebreus é fortalecer a fé e o amor das comunidades cristãs. Para
tanto, apresenta Jesus Cristo como único mediador entre a humanidade e Deus,
superando todas as demais mediações, como a Lei e o Templo. Exorta a “manter-se
firme na fé que professamos”, deixando transparecer que membros da comunidade
cristã estavam “voltando atrás”, retomando concepções e práticas antigas.
Jesus é apresentado como
o único sumo sacerdote e, portanto, já não há necessidade de outros
sacerdócios. O sumo sacerdote do Templo entrava no Santo dos Santos, uma vez
por ano, a fim de oferecer um sacrifício a Deus. Jesus, pela sua entrega
sacrifical, derrubou todas as barreiras que dificultavam o acesso a Deus.
Agora, por meio de Jesus, o sumo e eterno sacerdote, todo lugar e todo tempo
são propícios para a comunhão com Deus.
O texto salienta a
missão terrena de Jesus, sua encarnação, suas súplicas ao Pai em meio a
terrível sofrimento, na confiança de que ele podia livrá-lo da morte. Foi
obediente até o fim, e Deus o escutou. Jesus “atravessou os céus”, o verdadeiro
Santo dos Santos; ofereceu o sacrifício definitivo para a expiação dos nossos
pecados. Porque participou humildemente de nossa humanidade e de nossas
fraquezas, é capaz de compaixão. Atravessou o céu sem afastar-se da realidade
humana. Seu trono não é para juízo e condenação. Podemos nos aproximar dele,
fonte de graça e de misericórdia, com toda a confiança, sem nenhum receio. O
acesso a Deus está permanentemente aberto, e podemos contar com sua acolhida
amorosa.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
– A morte de Jesus foi consequência de sua fidelidade ao amor a Deus e ao próximo. Sua opção pela luz da verdade e
da justiça não agradou aos que preferiam as trevas do egoísmo, da mentira e da
dominação. Não é fácil entender a proposta de Jesus e aderir a ela. Judas
preferiu unir-se aos interesses dos chefes de Jerusalém; Pedro o negou por três
vezes… Também hoje existem maneiras diversas de trair e negar Jesus. Houve,
porém, pessoas solidárias com Jesus, como as mulheres e o discípulo amado.
Também José de Arimateia e Nicodemos… Nós somos chamados a seguir Jesus pela
renúncia ao egoísmo e pelo amor vivido cotidianamente. Podemos ser-lhe
solidários: ele se identifica com os pobres e sofredores.
– Jesus é o Servo de Deus que se ofereceu em sacrifício pela vida da humanidade. Assumiu a condição humana, foi
incompreendido e desprezado, perseguido e condenado; “como cordeiro, foi levado
ao matadouro”, porém, não usou de vingança nem de violência nenhuma. Como
“Servo sofredor”, carregou nossas dores e expiou nossas faltas. Foi obediente
ao Pai até o fim. Pela sua vida e pela sua morte, Jesus tornou-se “o caminho, a
verdade e a vida”. É importante que nos questionemos a respeito das
“fidelidades” que estamos assumindo em nossa vida: elas são coerentes com a
proposta de Jesus ou preferimos o caminho das comodidades e da indiferença
diante dos problemas que afetam a vida do ser humano hoje? Lembrar
especialmente os problemas apontados pela CF-2014 quanto ao tráfico humano.
– Jesus é o nosso mediador junto ao Pai. Ele nos entende perfeitamente porque assumiu em seu próprio
corpo os limites e fraquezas humanas. Ele se fez nosso irmão. Acolhe com
ternura e misericórdia toda pessoa que a ele se dirige. Ele é fonte de todas as
graças. Dele podemos nos aproximar sem medo, com toda a fé e confiança, na certeza
do perdão, da ajuda em nossas necessidades e da garantia de vida eterna.
Fonte: Revista Vida Pastoral
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